Mapeamento de curadoras negras, negros e indígenas no Brasil: contibuições para a curadoria brasileira e latinoamericana.
(Agosto 2021)
Em novembro de 2020 foram divulgados os resultados preliminares do “Mapeamento de curadoras e curadores negros, negras e indígenas”, ação iniciada via redes sociais, contando posteriormente com o apoio e colaboração do Projeto Afro e Trabalhadores de Arte. Os dados apresentados podem ser consultados nos sites do Projeto Afro e Trabalhadores de Arte ( http://www.trabajadoresdearte.org/sitio/mapa-das-curadoras-e-curadores-negras-negros-e-indigenas/ ). O projeto teve início após uma série de debates que denunciaram a insistência de diversas instituições artísticas brasileiras em manter estruturas racistas, como o fato de suas equipes curatoriais serem compostas majoritariamente por pessoas brancas em um país cuja a maior parte da população é negra.
É comum encontrarmos instituições que justificam essa situação com falas pouco consistentes, como a fantasiosa ideia de que há uma falta de profissionais negros e indígenas preparados para ocupar tais cargos. Já sabemos que essa fala é uma inverdade e tem sido utilizada como forma de manter os privilégios e a hegemonia da branquitude no setor.
O levantamento aqui mencionado demonstrou que, não só há profissionais negros, negras e indígenas para ocuparem tais cargos, como eles estão bem preparados e produzindo novos futuros para as artes do país. É possível localizar importantes e ousados trabalhos de curadoria desenvolvidos por profissionais negros, negras e indigenas em todo o território nacional. No entanto, cerca de 80% deles estão fora da oficialidade das equipes institucionais dos museus, centros culturais, institutos de arte, centros artísticos, etc. Esse aspecto nos revela a precariedade trabalhista do setor e o racismo presente nela. E, devido a isso, se fez necessário apresentar o estudo em colaboração com o coletivo Trabalhadores de Arte. Pensar a condição do trabalho nos ajuda a entender o sistema das artes de maneira crítica. E, de certo modo, isso também nos auxilia a pensar a realidade latino-americana, visto que o mesmo cenário está presente em centros culturais de outros países da região.
Em novembro, foi apresentado no site do Projeto Afro o artigo “Curadorias em disputa: Quem são as curadoras e curadores negras, negros e indígenas brasileiros?” (https://projetoafro.com/editorial/artigo/curadorias-em-disputa-quem-sao-as-curadoras-negras-negros-e-indigenas-brasileiros/), que introduz este e outros debates necessários a serem realizados, e os quais o mapeamento nos dá base. Naquele momento, o nosso objetivo foi o de apresentar o material como dispositivo para fomentar a ampliação de novas discussões. Recebemos muitas devolutivas a partir da publicação, e gostaríamos de refletir sobre algumas delas. Primeiramente, foi surpreendente perceber o alcance do projeto, muito acima do esperado. A circulação do material alcançou diversas regiões do país e da América Latina. Foram diversas mensagens, alguns interessados em saber mais sobre os dados, outros surpreendidos pela iniciativa e aqueles agradecidos por serem mencionados. Devido a importância da explanação de alguns pontos levantados, apresentamos a seguir uma breve reflexão que pode nos auxiliar no mapeamento e da contribuição dele na ampliação dos debates nas artes.
Um dos pontos questionados pelo público foi a respeito da metodologia adotada, devido ao uso das redes sociais, a legibilidade do processo foi posta em dúvida. Vale a pena pontuar que o Mapeamento não se iniciou com o propósito de virar um material de pesquisa acadêmica, mas de compartilhar informações, de provocar o sistema e suas bases. O desejo maior era o de partilhar a inquietação de quem trabalha no setor e identificava o discurso racista por trás do mesmo.
Tanto nas redes como na realidade, os agentes das artes se organizam em teias de contatos, e as indicações e reconhecimentos são feitos a partir dos grupos com os quais se relacionam. O fato do reconhecimento se dar através dessas redes pessoais, temos, de certa forma, uma estrutura que as favorecem. Ao perguntar via rede social quem são os curadores negros, negras e indígenas, estamos acionando outras vias de contato e reconhecimento, que talvez não fosse possíveis de serem contempladas por uma via hegemonica do sistema. Como já dito aqui, não é por acaso que cerca de 80% dos curadores presentes no mapeamento estão fora das instituições, o que demonstra que, em sua maioria, eles não estão inseridos nas redes de contato com as quais as instituições trabalham.
Utilizar o terreno da virtualidade e das redes sociais é entendê-los como instâncias de articulação do sistema das artes, que cada vez mais contribuem para o debate artístico, sobretudo, neste momento pandêmico.
Outro ponto que gostaríamos de destacar aqui diz respeito às compreensões de curadoria e de profissional de curadoria utilizadas. Partimos da noção de curadoria expandida, ou seja, entendemos que o fazer curatorial não se limita aos espaços museais e nem a formação do profissional à apenas o meio artístico e acadêmico. Consideramos, por exemplo, a curadoria literária, fotográfica, educacional, entre outras como espaços para o desenvolvimento da atuação de curadores. Procuramos respeitar também as indicações e os reconhecimentos vindos pelas pessoas que contribuíram para a construção do mapeamento.
Nesse caso, o critério de identificação racial, também questionado, não está necessariamente atrelado ao de curador. Não é pelo fato de um profissional ser identificado como negro ou indígena que sua curadoria também deva ser caracterizada por um por este viés. Não acreditamos que há uma curadoria específica desenvolvida por pessoas negras e/ou indígenas, e sim que há situações comuns que que atravessam o reconhecimento delas. Sobre este ponto, cabe pontuar que entendemos a complexidade do debate racial e não temos a pretensão de definir aqui quem é ou não negro, negras ou indígena. Evidentemente, sabemos que, no Brasil, o processo de reconhecimento racial se dá pela via da autodeclaração, de modo que cada nome citado tem a sua autonomia. No mapeamento, a dimensão racial se dá como ponte para o debate e não para enquadrar alguém na "caixinha da racialidade.
E, por fim, o outro tema que queremos levantar está relacionado ao uso de “listas de curadores”. Compreendemos que organizar um estudo atravessa diversas questões, uma delas é a impossibilidade de conter nele tudo o que há sobre determinado tema. Por mais extenso que um estudo possa ser, sempre faltará algo ou alguém, e aqui não foi diferente.
Entendemos o mapeamento como um processo contínuo, que se estenderá por muitos anos. Temos consciência de que não abarcaremos todos os curadores negros e indígenas brasileiros, os quais desejamos continuar conhecendo. Como parte desse objetivo, o projeto foi integrado à Rede de Pesquisa e Formação em Curadoria, programa de pesquisa vinculado a universidades e instituições artísticas, como a Universidade Federal de Minas Gerais, o Núcleo de Pesquisa do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães -, o Caderno Vida&Arte do Jornal o POVO, a Escola de Design (UEMG), o Laboratório de Práticas Experimentais em Arte e Educação (MAUC/UFC), entre outros.
Dentro da Rede, a pesquisa segue em continuidade com o projeto de elaboração de um estudo cartográfico do perfil dos curadores brasileiros, ao qual já foram adicionados novos nomes. Outra estratégia de estender o projeto foi iniciar uma série de entrevistas com os curadores já citados e aqueles que estão sendo incorporados. As entrevistas foram divididas em duas plataformas, no já parceiro Projeto Afro, onde são apresentadas as conversas com curadores negros e negras, e na página do Estúdio Colabirinto, um novo apoiador, em que serão publicadas aquelas referidas aos curadores indígenas.
De forma indireta, o mapeamento e os debates que surgiram através dele adentraram nas camadas dos museus e instituições, ao ponto do mesmo ser reconhecido como um documento que já é histórico, uma documentação importante na consolidação e reconhecimento de alguns curadores. De novembro de 2020 para cá, percebemos algumas movimentações no que tanje o reconhecimento e valoriação do trabalho de curadores negros e indígenas. Um fato que cabe ressaltar foi a nomeação de Keyna Eleison como diretora artística do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, junto com Pablo Lafuente. Na mesma instituição, foram contratadas Beatriz Lemos como curadora adjunta e Camilla Rocha Campos como coordenadora de Residências. Na Pinacoteca do Estado de São Paulo, houve a contratação de Horrana de Kássia Santos para o conjunto de curadores. E, recentemente, o Museu de Arte de São Paulo contratou a pesquisadora Hanaya Negreiros para o cargo de curadora adjunta de moda.
Apesar de estarmos em uma situação difícil na cultura devido à situação pandêmica, não podemos deixar de observar o cenário artístico e mantermos atentos às suas movimentações. Curadores negros, negras e indígenas são o futuro para as artes. Que as artes possam se tornar campos que promovam impacto e mudanças, e deixem de ser silenciadores daqueles que as questionam.