m um país como o Brasil, que, a despeito de um admirável dote artístico, nunca pôde se gabar de uma estrutura cultural condizente com sua capacidade, um grupo teatral completar mais de 30 anos de atividades ininterruptas é algo que, por si só, já seria motivo para celebrar. No entanto, quando, mais que isso, esse grupo chega a essa idade apresentando tamanho vigor em suas produções - com 12 espetáculos em seu repertório e de malas prontas para o mais importante evento de cenografia do mundo, a Quadrienal de Praga -, é realmente espantoso. Estamos falando do grupo mineiro Giramundo, que em junho será o centro de um grande evento promovido pelo Sesc Santo André, o Mundo Giramundo - A Cidade dos Bonecos. Trata-se de uma exposição gratuita que apresentará cerca de 650 bonecos construídos pela companhia ao longo de sua existência, além de promover espetáculos, oficinas e visitas guiadas. Ao longo dos 63 dias de evento, a unidade espera receber cerca de 126 mil visitantes.
Quando, em 1970, três professores da Escola de Belas-Artes da Universidade Federal de Minas Gerais se reuniram para montar um espetáculo de teatro de bonecos, eles não podiam imaginar que davam início a um dos mais importantes grupos brasileiros do gênero. Álvaro Apocalypse, que até hoje comanda o Giramundo, lembra-se que a idéia nasceu modesta. "Inicialmente não havia nenhuma pretensão comercial. Era uma estrutura familiar. Um casal e uma amiga - todos artistas plásticos - querendo investigar uma nova linguagem, porque desconfiávamos que o teatro de bonecos se situava numa fronteira rica entre as artes plásticas e o teatro."
Depois de algumas tentativas frustradas pela desistência de alguns colaboradores, Álvaro, Terezinha Veloso e Maria do Carmo Vivacqua conseguiram, enfim, montar A Bela Adormecida, uma adaptação livre do texto de Charles Ferrault. O público? Familiares e amigos. No entanto, entre eles, estava o diretor do Teatro Marília, que, encantado pelo resultado, decidiu convocá-los para algumas apresentações. "Com o sucesso, pudemos arrecadar dinheiro suficiente para uma outra montagem no ano seguinte, Aventuras no Reino Negro. E assim começou o grupo", explica Álvaro. "De uma apresentação de fundo de quintal, acabamos percebendo que havia espaço para explorar um tipo de teatro que naquela época se limitava às festas infantis."
Álvaro relata que, na ocasião, as referências sobre teatro de bonecos eram escassas. Mesmo nos grandes centros de produção cultural, como Rio de Janeiro e São Paulo, havia poucos grupos e quase nenhuma bibliografia sobre o tema. "Para conhecer um pouco mais, tivemos que traçar nossos próprios caminhos." E talvez essa dificuldade inicial tenha os conduzido para uma de suas mais marcantes características. Mais do que simplesmente um grupo teatral, o Giramundo é hoje um importante centro de pesquisas e de criação, preocupado em explorar as diversas possibilidades dessa arte, além de lutar pela sua disseminação e preservação.
O grupo
O Giramundo conta hoje com uma estrutura notável. São 23 integrantes trabalhando na montagem de espetáculos, na oficina de bonecos, em uma espécie de escola informal que oferece cursos e num museu criado em 1999 para abrigar seu acervo.
"O museu foi fundamental para que preservássemos tudo o que produzimos. Ao longo dos anos, percebemos que os bonecos que construímos só poderiam ser conservados se estivessem em atividade ou se fossem expostos. De outra maneira, esses seres tão frágeis morreriam", diz Álvaro. "Além disso, é uma maneira de os interessados em teatro de bonecos conhecerem um pouco mais dessa arte."
Além dos bonecos, o acervo do grupo sediado em Belo Horizonte inclui também uma coleção de fotografias, trilhas sonoras e documentos, uma série de estudos para a construção de marionetes e uma biblioteca especializada em teatro de bonecos.
Entre os 28 espetáculos montados pela companhia, estão peças que fizeram a história recente do teatro brasileiro. Exemplos não faltam: Cobra Norato, de 1979, baseado no poema homônimo do modernista Raul Bopp; El Retablo de Maese Pedro (1976), com texto de Miguel de Cervantes; ou os infantis Pedro e o Lobo (1993), livre adaptação do conto sinfônico de Sergey Prokofiev; e Carnaval dos Animais (1996), de Saint-Saëns.
Mundo Giramundo
O evento realizado pelo Sesc Santo André tem início no dia 7 de junho e segue até 17 de agosto. Segundo a coordenadora de programação da unidade, Évelim Lúcia Moraes, o Mundo Giramundo pretende explorar toda a riqueza e diversidade do grupo mineiro. "Eles já se apresentaram diversas vezes nas unidades do Sesc. Conhecíamos o trabalho deles e sabíamos da importância de sua trajetória para o teatro de bonecos no Brasil. Decidimos então montar um evento que, ao mesmo tempo em que apresentasse o grupo e seus espetáculos, pudesse evidenciar a riqueza dessa arte e abrir as portas para que os visitantes percebessem as múltiplas possibilidades do teatro de bonecos", explica.
Para conceber o espaço do evento foi convocado J.C. Serroni, que, além de um prestigiado cenógrafo, acompanha o trabalho do Giramundo desde seu início. "No mundo todo, poucos grupos têm a qualidade e a excelência deles em todas as etapas de produção. Tudo é muito bem pensado e trabalhado. Quando fui convidado a apresentar o projeto, percebi que o espaço deveria permitir que a abrangência do grupo se reproduzisse, que fosse possível ao público perceber os diferentes aspectos da produção. E acho que o projeto contemplou isso. Ele propicia um leque amplo de participação dos visitantes. A visita pode ser mais didática, mais lúdica, mais interativa, mais contemplativa. Mas sem deixar de lado o encanto por esse mundo paralelo dos bonecos", afirma o cenógrafo.
O resultado é uma pequena cidade cenográfica com cerca de 1.500 metros quadrados, situada no Espaço de Eventos do Sesc Santo André. Para chegar até ela, o visitante atravessa um túnel de cerca de cem metros que reproduz uma caminhada por uma floresta ao longo de um dia. Na cidade (veja ilustração), além de uma réplica do Globe Teather, de William Shakespeare, com capacidade para 200 pessoas, há um museu giratório - o Gira Museu - e reproduções de uma escola, uma biblioteca, uma oficina e casas onde estão alguns dos bonecos. Há também um mirante, de onde se vê a cidade do alto.
Atividades
De acordo com Évelim, o evento foi programado para receber públicos bastante diversificados. "A abrangência do trabalho do Giramundo garante o interesse dos mais variados perfis. Além disso, programamos visitas guiadas para orientar diferentes percursos pela exposição, ressaltando aspectos como a relação do grupo com a música, com as artes plásticas ou com a literatura", afirma. Aproveitando a presença da companhia em Santo André, foram programadas oficinas para profissionais ou interessados em teatro de animação, além de orientação para os professores que se dispuserem a trabalhar o evento em sala de aula.
Entre os espetáculos que estarão em cartaz ao longo do evento, estão os destinados ao público infantil, como Pedro e o Lobo, A Bela Adormecida, Um Baú de Fundo Fundo e Carnaval dos Animais, e adultos, como Cobra Norato, Os Orixás e As Relações Naturais. A cada mês, há uma programação diferente.
Durante a exposição, Santo André e algumas cidades da região receberão a visita do Giramóvel, um caminhão especialmente projetado pelo grupo para a realização de espetáculos de rua, no qual será apresentado Pedro e o Lobo.
"Estou muito animado com todo esse evento", afirma Álvaro. "Nunca fizemos nada nessas proporções. Seguramente será um grande acontecimento, para nós e para o teatro de bonecos."